E os baby boomers envelheceram…

Eles inventaram o rock’n’roll, derrubaram tabus, amaram livremente, enfrentaram ditaduras e juraram que seriam jovens para sempre. Mas um dia, ao se olhar no espelho, notaram um rosto juncado de rugas. O corpo já não obedecia aos comandos, a mente pregava peças, aquela vontade louca de mudar os rumos da história aquietou-se. A geração baby boomer — a nascida no pós-guerra, responsável por remodelar o mundo no século 20 — enfim envelheceu.

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Nunca o globo esteve tão senil quanto agora. São 841 milhões de pessoas com mais de 60 anos, alterando radicalmente o desenho da pirâmide etária — se antes um funil invertido, agora base e topo têm largura semelhante. Em 2020, haverá mais idosos que crianças de até 5 anos, nas projeções da Organização Mundial de Saúde (OMS), que calcula em 2 bilhões o número de anciãos em três décadas, ou 20% dos habitantes do planeta. Enquanto, daqui a 30 anos, a população com mais de 60 vai quadruplicar em relação a 1950, na faixa dos octogenários, o salto será 26 vezes maior.

Por trás dessas estatísticas superlativas, estão mulheres e homens que demandam uma atenção nem sempre dispensada, em um mundo aficionado pela juventude. Se a saúde do corpo muitas vezes é negligenciada, o descuido da sociedade com a mente do idoso é motivo de preocupação entre especialistas. Médicos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e outros profissionais que lidam com a terceira idade veem, no dia a dia, mazelas invisíveis a olhos que pouco se voltam à velhice.

 

Idosos isolados

Diferentemente do que muitos podem pensar, porém, depressão, dependência química e suicídio não só são problemas comuns nas faixas etárias avançadas, como estão crescendo assustadoramente. Discussões e políticas voltadas à saúde mental do idoso não acompanham essa velocidade. “É um homicídio gradativo desse ser social”, define a psicóloga Denise Machado Duran Gutierrez, professora da Universidade Federal do Amazonas e autora de diversos artigos científicos sobre suicídio entre idosos. Para a especialista, a visão equivocada de que é “normal” os mais velhos se isolarem, perderem funções e espaço, é uma violência contra a qual pouco se faz. “Há aquela coisa de que o idoso é tristinho mesmo, fica ali no cantinho mesmo. A própria sociedade e a família nutrem isso. Retiram do velho suas forças sociais.”

Embora reconheça avanços na rede de atendimento e proteção ao idoso, ela denuncia a falta de atenção com os aspectos psicossociais da velhice. “No contexto atual, temos o Estatuto do Idoso, a delegacia do idoso, centros de atenção integral, todo um sistema de assistência, uma mobilização em torno das necessidades dele. Mas, como sempre, as políticas de saúde mental são tardiamente implementadas. Se avançou muito nessa visão do que deve ser, mas não avançou na qualidade. É uma questão que não tem visibilidade”, critica Denise Machado Duran Gutierrez.

No Brasil, até mesmo publicações sobre o tema são escassas. Além disso, os profissionais que lidam com idosos têm pouca especialização, observa Gabriela Arantes Wagner, professora-assistente da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. “A transição demográfica e epidemiológica é evidente, e estamos ainda engatinhando em relação ao aumento de contingente de profissionais especializados em gerontologia e geriatria, não apenas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)”, diz. A médica de família Rachel Vaz Cardoso, da Associação Brasiliense de Medicina de Família e Comunidade, também lamenta que são poucos os médicos e enfermeiros do Programa de Saúde da Família (PSF) que têm formação nessa área.

Impasse e despreparo

Doutor em enfermagem psiquiátrica, Maycon Rogério Seleghim, da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, aponta outro problema: o impasse entre as unidades básicas de saúde e os Centros de Atendimento Psicossocial (CAPs), serviço especializado em saúde mental e dependência química. “Na prática assistencial, quando há a identificação de algum paciente com demanda psicológica ou psiquiátrica, ele é encaminhado para o CAPs, e então deixa de ser acompanhado pelas equipes de saúde da família.”

Nos casos de dependência química, a psiquiatra Helena Moura, especialista na área, reclama da inexistência de locais para internação preparados para as especificidades do público idoso. “Quando eles precisam internar, vão para comunidades terapêuticas que têm convênio (com os govermos). Como vai internar em uma comunidade terapêutica lá longe uma pessoa que tem problema respiratório, problema cardíaco?”, questiona.

De acordo com a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde, “o atendimento ambulatorial em saúde mental ou em decorrência de problemas com álcool e outras drogas para a população maior de 60 anos tem representado cerca 1,1 milhão do total dos 16,7 milhões de atendimentos realizados nessas unidades. Esses dados têm se mantido no período de 2008 a 2015”. A nota também informa que “uma pessoa pode ser submetida a vários procedimentos”.

Acompanhamento questionado

Respostas urgentes

“Muitos dos profissionais de saúde, das ciências sociais, psicólogos e de outros setores da vida de uma comunidade obtiveram uma formação inicial que não contemplava nem a geriatria nem a gerontologia, uma vez que não eram consideradas disciplinas prioritárias. Mas, mesmo que assim não fosse, o envelhecimento demográfico e o aumento da longevidade a que assistimos é ímpar na história da humanidade, surgindo, cada dia que passa, novas situações a necessitar de novas investigações e descobertas para que se possa dar respostas urgentes e eficientes. Se considero que a maior parte dos profissionais não está capacitada para dar resposta a essa nova realidade e às que vão surgindo constantemente — Portugal, por exemplo, começa a ter bastantes pessoas com mais de 100 anos vivendo em suas casas e ativas, uma realidade surgida recentemente —, penso que muito menos o estarão os formuladores de políticas, sobretudo se não forem tecnocratas e não olharem para o futuro (que não está muito longínquo) ou não ouvirem as comunidades locais nas quais estão incluídos os idosos. Hoje, os idosos, pelo menos nos países europeus, já representam uma força eleitoral suficientemente importante para não ser descurada por decisores políticos e por quem faz política.”

Zaida Azeredo, coordenadora da Unidade de Pesquisa em Educação e Intervenção Comunitária do Instituto Jean Piaget, em Lisboa

Entre especialistas, porém, há preocupação com subidentificação e subnotificação dos casos de idosos que precisam de cuidados na área de saúde mental. “Há falta de um sistema de saúde que adote medidas de acompanhamento e de avaliação com indicadores de qualidade para a consulta a idosos, tanto na atenção primária como na atenção psicossocial e hospitalar”, afirma Raimunda Magalhães da Silva, professora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará que pesquisa o suicídio entre idosos. “Possivelmente diante de uma grande demanda para os profissionais atenderem nos serviços públicos de saúde, este não dispõe de tempo para observar comportamentos ou de questionar comportamentos observados durante a consulta do idoso”, diz.

Em nota, o Ministério da Saúde afirma que a Caderneta de Saúde da Pessoa Idosa é um dos instrumentos que ajudam as equipes de atenção básica a fazer a avaliação clínica, psicossocial e funcional do paciente. “A partir desta avaliação é possível rastrear/identificar os idosos mais vulneráveis e definir o plano de cuidados mais apropriado”, diz o órgão. “No caso de transtornos mentais identificados ou tentativas de suicídio as equipes da atenção básica podem acessar a Rede de Atenção Psicossocial, por meio dos CAPs.”

A partir do levantamento de artigos científicos e de entrevistas com mais de 40 especialistas, profissionais que trabalham com esse público e com os próprios idosos, o Correio preparou esta série de reportagens sobre a saúde mental na terceira idade.

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